Moda Sem gênero
- Jasmine Santiago, Fausto Junior
- 30 de out. de 2017
- 5 min de leitura
As questões voltadas ao gênero na moda perpassam por uma discussão histórica. A revolução francesa foi um marco na mudança do pensamento social, impactando inclusive as percepções sobre o modo de se vestir que influenciou o mundo até hoje. Ainda no século XIX, a moda começa a se distinguir em relação ao gênero: os homens começam a se vestir de forma cada vez mais sucinta, com tons discretos. Em contraponto, as mulheres passam a ter vestimentas mais luxuosas e ornamentadas, abusando das rendas e dos laçarotes. Uma das explicações que a distinção do gênero na moda se deu de forma tão brusca é a intenção da vestimenta masculina ter perdido seu caráter ornamental, e passou a ser pautada na ideia de acúmulo de conhecimento, valores “intrínsecos” aos homens da época. O ornamento e a beleza passam a ser domínios do campo feminino, contextualizando a mulher como um objeto de ostentação.

Belmiro de Almeida: Arrufos, 1887. Óleo sobre tela
O impacto causado pela delimitação de gênero na vestimenta se mantém até o início do século XX. Apesar desta repressão começa a ser combatida ainda no século XIX com o surgimento de movimentos sociais como o das sufragistas no Reino Unido, é somente com os questionamentos gerados pelos protestos impulsionados pela primeira guerra mundial e a ascensão de movimentos artísticos como o Jazz norte-americano, que estava idealizado em um novo estilo de vida, que as possibilidades de outras formas de se vestir começaram a ganhar força.
As mudanças sociais, culturais e econômicas impulsionaram novas formas de percepção sobre si. A roupa passa a ser questionada, e as regras instituídas ainda no século anterior passam a ser quebradas aos poucos. Coco Chanel e Yves Saint Laurent são alguns dos precursores desse movimento libertário ao implementar em suas criações peças de roupas sem gênero, ou seja, uma moda que poderia ser adotada por homens e mulheres como desejassem; o sexismo não era permitido a essas criações.

O Tailleur de Coco Chanel e o Le Smoking de Yves Saint Laurent
O modelo de sociedade patriarcal é o grande responsável pelo antagonismo do gênero na moda, o que resulta na separação do que seria dito de "de menina" ou "de menino". De uma perspectiva histórica, este modelo sempre defendeu os privilégios e os interesses de uma maioria dominante da sociedade; na atualidade, a liberdade de escolha da vestimenta ainda gera conflitos, pois não há na prática uma autonomia permitida ao indivíduo em se vestir como quiser sem que seja questionado. Sempre há uma delimitação mesmo que moral, uma regra a ser seguida, o que conflita na liberdade de expressão ocasionada pela moda.
Artistas, estilistas e fashionistas, no entanto, constantemente resistem e contestam a ideia instituída pelo patriarcado de gêneros inflexíveis e a indumentária vem a se tornar uma importante, senão a principal, forma de expressão.
Foi em 1956 que o artista Flávio de Carvalho teve a audácia de sair pelas ruas do Centro da católica e tradicionalista São Paulo vestido do que ele chamou de New Look: uma saia plissada rosa acima do joelho e uma blusa de mangas curtas e folgadas. Isso antes mesmo da popularização das minissaias. O ato chamado por ele de Experiência No 3, tinha em vista criar uma vestimenta adequada, fresca e agradável, ao homem dos trópicos que tinha que lidar no dia-a-dia com as altas temperaturas. A polêmica evidentemente foi grande, mas a moda infelizmente, não pegou.

Flávio Carvalho durante a experiência No 3
De lá para cá, são inúmeros os nomes e movimentos que quebraram qualquer regra no que diz respeito a distinção de gênero na moda. Do glam rock e suas icônicas figuras andróginas de David Bowie e Secos & Molhados nos anos 1970, passando pelos clubbers dos anos de 1990, chegamos aos homens de saias dos anos de 2010, tendo como representantes o ator global Bruno Gagliasso e Jaden Smith, filho do ator Will Smith. Jaden, a propósito, se adaptou tão bem das vestes e acessórios voltados para a mulher, que foi estrela de campanha da coleção feminina da Louis Vuitton.

Jaden Smith estrelando a campanha feminina da marca Louis Vuitton
E nesse meio tempo, diferentes estilistas vêm trabalhando com esse conceito de moda sem-gênero. Na temporada de alta-costura outono-inverno 2015/16, a Chanel, que hoje tem a frente Karl Lagerfeld, encerrou o desfile (um dos momentos chaves de qualquer passarela) com uma noiva – Kendall Jenner, no caso – num smoking branco de cetim com maquiagem sóbria e penteado “masculinizado” (isto é, o que se entende por penteado masculino). Retomou, assim, algumas das revoluções da moda feminina proposta pela criadora da marca, Coco Chanel. Yves Saint Laurent, que já nos anos de 1960 propõe um visual andrógino a partir da desconstrução da silhueta, retomou este tema com força total em 2015, em coleção assinada por Hedi Slimane.
No Brasil, Alexandre Herchcovitch – que hoje está à frente da marca À La Garçonne – e João Pimenta são alguns dos principais nomes a propor uma moda mais fluida. Enquanto João Pimenta é um dos pioneiros a criar no país saias para homens, Herchcovitch, vem pontuado isso ao longo de toda a sua carreira, além de sempre estar incluindo no seu casting de modelos pessoas transgêneros e andrógenos. Johnny Luxo, lendário DJ da noite clubber paulista e conhecido pelos looks femininos e lúdicos, é um dos seus principais parceiros.
Além disso, marcas inteiras foram surgindo tendo como proposta uma moda totalmente sem fronteiras de gênero: no exterior, 69, Vaqueras e Not Equal – nascida nos Estados Unidos, mas assinada pelo estilista mineiro Fábio Costa – e no Brasil, Another Place e Fuckt!, são só alguns exemplos.
Embora o movimento no mercado de moda seja muito interessante e até revolucionário, vale fazer uma ressalva que muitas marcas – não todas, como as dos exemplos acima – se valem do conceito de gênero, investindo apenas em calças e camisas largas, de cortes retos e cores em tons pastéis. Em entrevista ao programa Mundo S/A, DA Globo News, Herchcovitch destaca que o respeito às formas do corpo que diferenciam homens e mulheres fazem com que muitas dessas criações sejam de fato peças largas para caber nos dois corpos. Se por um lado traz uma desconstrução da silhueta da moda feminina, por outro se esquece que as mulheres há tempos já se adaptaram muito bem a calças, ternos e outras vestimentas originalmente vistas como masculinas. E, ao homem, se ignora a possibilidade das peças mais justas ao corpo, como calças leggings, das cores mais vibrantes e glitterizadas e do uso de saias e vestidos.
O movimento de contestação do gênero na moda existe há anos, tem adeptos de peso, mas ainda encontra muita resistência dentro de uma sociedade construída sob bases machistas e marcada pela lgbtfobia. Até a idéia de itens unissex, algo bastante comum em lojas de departamento há muitos anos, ganhou outros contornos, atualmente, como se fosse apologia a uma suposta “ideologia de gêneros” – vide o caso da C&A.
Conforme escreve Clarice Lispector na obra Sopro de Vida, a liberdade ofende mesmo que inocente. Mas tem muita gente, dentre anônimos e famosos, ainda disposta a enfrentar de peito aberto com muito visual “fora do comum”, qualquer limite ou distinção de gênero na moda, em prol da liberdade de se vestir como quiser.
Referências bibliográficas:
SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas. A moda no século dezenove. São Paulo. Companhia das Letras, 1987. p. 52-85.
POLLINI, Denise. Breve história da moda. Claridade, 2007.
Jaden Smith para Louis Vuitton:
http://ffw.uol.com.br/noticias/moda/jaden-smith-estrela-campanha-feminina-da-louis-vuitton/ http://revistaglamour.globo.com/Moda/Fashion-news/noticia/2016/01/moda-unissex-jaden-smith-estrela-campanha-feminina-da-louis-vuitton.html
Chanel:
https://www.youtube.com/watch?v=cjH6VC87xKo
Saint-Laurent:
http://br.fashionnetwork.com/news/Silhueta-androgina-na-Saint-Laurent,458923.html
Alexandre Herchcovitch e Johnny Luxo:
https://revistatrip.uol.com.br/trip-fm/alexandre-herchcovitch-e-johnny-luxo
Mundo S/A:
https://globosatplay.globo.com/globonews/v/5740100/
Marcas: https://vaquera.nyc/ https://sixty-nine.us https://www.instagram.com/69us/ http://www.anotherplace.com.br/ http://www.notequal.co/shopcollections/ https://www.fckt.com.br/
caso C&A: http://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2016/05/cantora-critica-c-por-propaganda-com-casais-com-roupas-trocadas.html
Referências imagens:
imagem 1: https://br.pinterest.com/pin/75857574957140875/
Imagem 2: http://afriendinparis.com/chanel-tailleur-tweed/ https://www.polyvore.com/yves_saint_laurent_le_smoking/thing?id=27608265
Imagem 3: http://paleonerd.com.br/wp-content/uploads/2015/09/0127.jpg
Imagem 4: http://assets.papelpop.com/wp-content/uploads/2016/01/jaden-smith-louis-vuitton.jpg
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